sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

O AMANTE DE TÉSPIS

O Carro de Téspis, ilustração que representa o dramaturgo.

O professor de Teatro resolveu falar sobre a criação da personagem e de todos os elementos necessários à sua formação. Antes mesmo de solicitar um voluntário para o próximo exercício, Rui pulou três cadeiras e se jogou no proscênio.
- É isso que eu chamo de determinação. – Pilheriou. A turma toda riu.
- Manda ver que o negócio aqui é visceral! – Declarou rindo o jovem ator.
- Vá com fé, Rui. – disse o professor – Você tem que manter o distanciamento.
Rui deu alguns passos para trás até o ciclorama – uma enorme tela semicircular, branca, situada no fundo da cena, e sobre a qual se lançavam as tonalidades luminosas de céu que se desejava obter. O ciclorama do Teatro era também conhecido como a parede do infinito ou a “cúpula de horizonte”.
- O que você está fazendo? Vem pra cá. Fica no centro, embaixo da luz.
- Você não disse para manter o distanciamento?
- Estava me referindo ao distanciamento brechtiano.
- Ah, tá... Brecht?
- É, Brecht.
(...)
Ele pegou o banco e posicionou embaixo da luz de pino que caía sobre o centro do palco. O professor prosseguiu com as orientações.
- Você agora é um detento. Foi levado para a sala de interrogatório. O ambiente é úmido. Os investigadores estão na penumbra lhe questionando. Você é suspeito de ter matado uma jovem de quinze anos. Ela foi violentada, retalhada e escondida. - “Sinistro”, pensou Rui. - A polícia encontrou o corpo. Você foi visto no local do crime horas antes. Suas mãos estavam sujas de lama. Se você matou mesmo a garota, nós vamos saber agora.
Neste momento, o professor começou uma série de perguntas que foram acompanhadas de instruções. Cada questionamento, uma instrução. Rui se contorcia no banco, com os olhos querendo saltar do rosto.
- A culpa não foi minha. Eu não estava lá. – Resfolegava.
O ar que entrava e saía de suas narinas podia denunciá-lo a qualquer instante. O professor – agora interpretando o investigador – esperava uma fala reveladora, que pudesse trair a prenunciada inocência.
- Eu sou inocente, doutor... Eu juro! – Rui evitou encarar o investigador. Tinha ouvido ali mesmo que os olhos eram as janelas da alma. Os olhos poderiam dizer se ele estava mentindo ou falando a verdade.  O professor/investigador simulou mergulhar uma faca em um tacho com água fervente. Ele descreveu isso com tanta riqueza de detalhes, que os alunos não tiravam os olhos do local que ele apontara para o tacho. Mais importante que contar, foi mostrar que o tacho estava realmente lá.
- A lâmina quente anestesia a pele. Vou começar cortando sua orelha. – Ameaçou.
- Não faz isso não, pelo amor de Deus! – Vociferou.
As pernas de Rui tremeram ininterruptamente. A respiração ficou mais forte. Os olhos, esbugalhados, contemplaram a faca afiada perto do rosto. O jovem ator, pálido como um defunto, viu a morte em forma humana a sua frente - como num filme de Ingmar Bergman onde ela, a morte, desafia o personagem Antonius para uma partida de xadrez.
- Você acabou com a vida de uma jovem, seu demente! Ela era apenas uma menina e você estragou tudo que um dia ela sonhou. Vou fazer com você, o mesmo que você fez com ela. E vou começar por suas orelhas nojentas! – O investigador ergueu a faca e - tal qual uma guilhotina - desferiu o primeiro golpe – Seu troca-pernas de uma figa!
- Aaaaaaaaaaaaaaaaa!!!
O grito estridulante de Rui – como o de um porco levado ao matadouro – penetrou no Teatro e rompeu à calçada. Duas alunas, também chamadas de “jogadoras” pelo professor, sentadas logo na primeira fila do Teatro, sobressaltaram; os demais não conseguiram segurar o riso que, automaticamente, foi reprovado pelo docente.
- Meu Deus, é a rasga mortalha! A voz do inferno! – Estremeceu uma senhora que passava em frente ao Teatro naquele instante.
- É nada! – Riu o vendedor de pipocas que também passava pelo local – É um bando de doidos aí dentro que fala uma língua estranha, corre no meio da rua e brinca como criança dizendo que estão fazendo teatro!
No palco, a luz revelou o jovem ator, ensopado pelo suor. Rui inspirava com dificuldade pelo nariz e expelia com força o ar rarefeito.
- Bem vindo ao Teatro, Rui. – Declarou o professor.
- Eu estou, - Inspirou fundo e fez uma cara de culpado – li-te-ral-men-te, cagado! – Confessou o amante de Téspis. A interpretação havia sido, sobretudo, orgânica.
A gargalhada dos alunos foi mais alta que o grito.
(Parte integrante do livro "NABOA", em fase de produção, autoria de Pawlo Cidade) 
   

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